terça-feira, 29 de junho de 2010

Lobo, o Sócrates - Capítulo IV


O lobito, à medida que ia crescendo, em idade e volume, ia cobiçando cada vez mais um lugar confortável, na vasta floresta em que vivia. Só que, conforme ia pensando e desejando, cada vez mais na sua imaginação e apetite iam crescendo, e cada fantasia que tinha era, de dia para dia, senão de hora para hora, sucessivamente alterado para algo mais rico e colorido! E a sua imaginação paracia não ter limites!
Mas a criatura não se sabia saciar com os produtos da sua mente, por muito apetitosos que eles fossem! O tempo em que não passava à caça, ou a mirar as fêmeas que por ali iam passando, ia suspirando, encostado a um velho penedo, enquanto ia pensando no maravilhoso que seria se encontrase uma - ou mais - vias que tornassem tudo aquilo realidade. Para isso ia, atentamente, observando os lobos mais velhos e ouvindo as suas experiências; de tudo isso, seleccionava o que lhe parecesse mais provável de adaptar ao seu próprio perfil e, com isso, chegar a algum lado!
Se este lobo mentia com sucesso, retinha que mentir e enganar era uma boa ideia. Se aquele outro mostrasse que o uso de falinhas mansas era o mais acertado, para ganhar aliados, que diabo, era mesmo o mais fácil para chegar ao seu intento!
Seduzir lobas mais idosas, mesmo aquelas já meio peladas e carentes de alguns dentes, mas que possuissem recordações, conhecimentos ou contactos, valia! Com o tempo ganhou mesmo o hábito - depois difícil de afastar - de apreciar quase exclusivamente lobas maduras, maduríssimas, mesmo!
Como forjara um feitio afável e sociável, reflexo da sua avidez de conhecer quem importasse, acabou por ser aceite num amplo círculo social, ao início, num papel servil e submisso, mas sempre subindo em desejos e intenções, o que o incitava a, quando oportuno, camuflar essa "submissão" exibindo um perfil feroz e dirigente, traços que lhe eram mais agradáveis de assumir!
Ouvindo falar dos seus primos afastados, os cães, acabou por tecer por eles admiração cega: mostravam uma sujeição oportuna, o que fazia com que os seus "donos" os amimassem, alimentassem, reservassem mesmo local fixo para habitar...
Perto dali havia uma velha moradia onde uma velha solteirona de hábitos peculiares tinha precisamente um cão, de nome Sócrates, inofensivo por se encontrar sempre fechado num quintal. Se era perigoso ou não, era coisa impossível de se perceber por essa mesma razão, mas que ladrava entusiástica e ruidosamente, fazendo-se ouvir a quilómetros de distância, era coisa verdadeira!
- Que belo nome para alguém que se impõe, não pelo que faz, mas pelo quanto se faz ouvir! - murmurava entre fauces o nosso lobo! E em breve, na sua mente surgia a vontade de se baptizar com o nome do outro canídeo! E, como para ele, a "Vontade" era algo de imperioso...

quinta-feira, 24 de junho de 2010

Portugal, de Luís Diferr e Jacques Martim

Foi em 2002 que Luís Diferr apresentou a Jacques Martin, então em visita ao Festival da Amadora, alguns seus trabalhos. O autor belga, mesmo que já vendo mal, conseguiu de algum modo “perceber” a arte do Luís e, ao que parece, pouco depois encomenda-lhe que ilustre um livro sobre o seu personagem Lois, descrevendo Portugal numa suposta viagem documental desse herói! Ao que parece, mais uma vez, é que depois de um contrato que não foi fácil de negociar, Luís Diferr tinha dois anos para ilustrar o livro! Pois bem, só acabou a encomenda no ano passado;
Conheço bem o Luís, somos amigos de longa data, e já colaborámos, nos dois livros da série Dakar o Minossauro. Como guionista, foi sério, competentíssimo, imaginativo e bem humorado! Foi mesmo o único guionista com quem me senti entusiasmado em trabalhar! Desta feita, o seu rigor e preciosismo levou-o a ultrapassar os timings, a explorar até à loucura cada detalhe, cada perspectiva, com um olho atento e perspicaz. Não lhe foi negado qualquer documento, muitos foram os que mereceram da sua parte agradecimentos pelo apoio mostrado, permitindo o autor chegar a um trabalho como nunca foi feito em Portugal, e vários são os autores daqui que fazem trabalho com pesquisa histórica! Fica, assim, o Luís Diferr como o feliz autor de uma bela obra de pesquisa com uma qualidade iconográfica ímpar!
Pena que não se trate de um livro de banda desenhada, fica como que uma obra indistinta, como que um portfolio de imagens de reconstituição histórica sob uma aparência de álbum de bd, o que resulta num livro de aspecto um tanto infantil.
Curiosa foi a escolha da imagem para a capa: sendo o livro ilustrado com imagens tão densas, barrocas – como seria de esperar, visto a época retratada passar por esse estilo – a capa tem um trabalho limpo, despojado. A aproveitação da Torre de Belém não é estranha ao autor: além de a desenhar muito no livro, recorde-se que já a tinha “retratado” num pequeno – 2 páginas – episódio da Maria Jornalista…
Para concluir, refiro o trabalho de Jacques Martin, para este seu livro póstumo: Além de uma supervisão que se adivinha longínqua e vaga, apenas assina genuinamente o prefácio, pobre e banal. Muito longe estão os tempos em que assinou algumas obras-primas da bd belga.

segunda-feira, 14 de junho de 2010

O Pesadelo de António Maria

António Maria da Silva era o Presidente do Ministério da Primeira República. Para "ilustrar" a "peça revisteira" Tiro ao Alvo, Joaquim Guerreiro fez um desenho animado que é considerado como o primeiro feito em Portugal: "O Pesadelo de António Maria". Os desenhos originais do autor foram preservados e, em base neles, artistas actuais reconstituiram em 2001 primorosamente o filme original, podendo actualmente ser apreciado, nomeadamente, a quem for ao CNBDI (Amadora) ver a exposição sobre BD - e não só! - e os 100 anos da República. A exposição é modesta e despretenciosa, iconográficamente já se viu melhor, tendo em conta a qualidade dos artistas cuja obra lá se encontra exposta. A permanente exibição deste filme é, em todo o caso, a jóia da coroa do evento.

Filme contemporâneo da medíocre série animada "Mutt and Jeff", "O Pesadelo de António Maria" não lhe fica à frente, mas merece ser apreciada por ser uma tentativa mesmo assim bem sucedida de animação pioneira entre nós! É claro, se era verdade que na altura Joaquim Guerreiro tactearia no escuro, perante uma tecnologia para a elaboração de desenho animado que lhe era provávelmente totalmente estranha, desenvolvida então pelas américas. o resultado não era muito melhor do que por lá se conseguia. Mesmo assim, por essas longínquas landes o acetato acabara de ser inventado, fazendo esta arte dar um salto, mas o autor luso ainda fazia todos os desenhos em papel branco, reproduzindo pacientemente tanto as personagens como os cenários, meticulosamente, nos 159 desenhos que constituem a matéria prima do filme. Isso é fácil de notar desenho a desenho, atentando-se nas "imperfeições" que se podem notar de imagem a imagem.

Sem uma indústria nem nada que se assemelhe por cá, que permitiria que a animação pudesse evoluir de um modo mais ou menos fluido, Joaquim Guerrerio fez tudo como lhe foi possivel, apenas munido de talento para desenhar, paciencia e uma boa intuição! O que já não é nada mau!

Provávelmente, se o filme for comparado com o que nessa altura era feita, o filme mesmo assim talvez seja algo fraquinho, mas compreensivelmente poder-se-á dizer que "para português, não está mau"! Num país sempre renitente em aceitar o moderno e o actual, esse "para português" é uma expressão que encoraja o "chico-espertismo", o "Quem não tem cão caça com gato", mas é este o país que temos, e inconformadamente podemos aceitar com algum entusiasmo algumas obras com valor feitas com esse nível de empenho. Como é o presente caso!